Um dos pontos fundamentais mais difíceis de transmitir com clareza a nossos clientes é o “ânimo definitivo”, critério escolhido pela lei brasileira para definir a residência fiscal de qualquer pessoa física. A escolha do critério não é ruim. Porém, faltam informações a respeito de como cumprir os requisitos para deixar de ser residente fiscal no Brasil, e a Receita Federal do Brasil (RFB) dá orientações superficiais e confusas.
O objetivo deste texto é tratar mais profundamente de como funciona o critério escolhido pelo legislador. Poucas são as posições assumidas publicamente pelo Fisco; mais raras ainda são as decisões que lidaram com o assunto, tanto do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) quanto do Judiciário.
Mas saber do assunto permite determinar se uma pessoa deve pagar imposto de renda no Brasil em bases universais. E também deixa claro como a falta de informações abre uma margem larga para a escolha da interpretação mais conveniente, seja ao Fisco, seja ao contribuinte, o que interessa ao planejamento prévio e à prevenção de riscos.
Por que discutir residência fiscal no Brasil e o “ânimo definitivo”
Para quem decide viver e trabalhar no exterior, ser residente fiscal no Brasil significa submeter à tributação brasileira a renda auferida no exterior, não importa o país, mesmo se o dinheiro nunca for levado ao Brasil. Deixar de ser residente fiscal no País significa realizar os procedimentos de saída definitiva do Brasil, com apresentação da Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP). Para tanto, é necessário saber quais são os requisitos para deixar de ser residente fiscal no Brasil e tornar-se não residente.
Além disso, o Banco Central está propondo criar um critério próprio de “residência cambial“, parecido com o fiscal, mas para fins de tratar informações sobre remessas internacionais, registros de capitais estrangeiros no Brasil e de capitais brasileiros no exterior. Isso promete criar ainda mais confusão.
O ânimo definitivo é requisito para adquirir ou manter residência fiscal no Brasil
A regulamentação da Receita Federal 1Instrução Normativa SRF 208/2002, arts. 2º e 3º. estabelece várias regras a respeito da residência fiscal no Brasil da pessoa física. Para os limites deste artigo, vamos nos concentrar em duas delas:
- residir no Brasil em caráter permanente; ou
- sendo brasileiro não residente, retornar ao País com ânimo definitivo, tornando-se residente fiscal a partir da data da chegada.
A menção ao “ânimo definitivo” é feita apenas uma vez, mas a referência ao “caráter permanente” nada mais é que uma referência indireta ao “ânimo definitivo”2A expressão “caráter permanente” é utilizada pela Lei 3.470/1958, art. 17, caput. Em nenhum momento a lei tributária faz referência direta à expressão “ânimo definitivo”, somente a regulamentação da RFB..
Mas o que é ânimo definitivo?
A expressão “ânimo definitivo” não vem da lei tributária, mas da noção de domicílio civil. Ali se diz que “o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo“3Código Civil, art. 70.. Para os autores civilistas4PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, v. I, 23ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 319-320; RODRIGUES, Silvio, Direito civil, São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 105., a lei civil está falando de dois elementos que, somados, resultam na noção de “domicílio civil”:
- a “residência“ é o aspecto objetivo do domicílio, um lugar físico, ocupado pela pessoa para ser o centro de suas atividades;
- o “ânimo definitivo” (animus manendi) é o aspecto subjetivo do domicílio, o que “liga” efetivamente o indivíduo àquele lugar.
O ânimo definitivo corresponde à intenção de utilizar um local como abrigo duradouro e estável, não temporário. Por essa lógica, vale afirmar que primeiro é necessário identificar o ânimo definitivo, para depois identificar o local. A partir desse local, uma pessoa desenvolve suas relações sociais, sua prática profissional, administra seus bens.
Em outros termos, o local escolhido torna-se “centro de interesses vitais” de uma pessoa, seja para fins familiares, profissionais ou o que mais seja. Sem o ânimo definitivo, não há uma “residência”, mas apenas um local de estadia ou de hospedagem (a visita à casa de parentes, a internação para tratamento médico, o quarto de hotel).
A lei tributária pode escolher o critério que preferir, desde que revele alguma pertinência econômica entre o indivíduo que aufere renda e o Estado que cobra o imposto de renda5SCHOUERI, L. E. Residência fiscal da pessoa física. Direito Tributário Atual, v. 28, 2012, p. 149-172 (152-153).. Ao escolher um critério utilizado pelo Direito Civil, porém, o legislador brasileiro trouxe também as inseguranças desse modelo.
As fragilidades do uso do “ânimo definitivo”
A função do domicílio é demonstrar o lugar onde a ação do Estado será mais eficaz para a solução de conflitos, seja como Estado-juiz, seja Estado-autoridade eleitoral, Estado-autoridade fiscal etc. Por isso se fala em domicílio civil, domicílio eleitoral ou domicílio tributário6O “domicílio tributário”, previsto pelo art. 127 do CTN, é um critério utilizado para a fiscalização e administração de diversos tributos, e também, eventualmente, para definir quem é o ente competente num conflito interno, quando o domicílio tributário for expressamente adotado para delimitar a competência tributária da União, Estados, Municípios e do Distrito Federal. Em outras palavras, é conceito parecido com o conceito de “residência fiscal”, mas não se trata da mesma coisa. Vide XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 218. Não é à toa que é tão difícil distinguir a “residência fiscal” de outros conceitos..
Por isso faz sentido o Estado utilizar o domicílio para poder agir em vários lugares diferentes, onde quer que uma pessoa possa ser encontrada de forma mais duradoura. Mas esse é o contrário do que se quer em termos tributários, em que a existência de uma dívida com o Estado (o tributo) deve ser clara e líquida.
Uma pessoa com ânimos múltiplos
O Código Civil Brasileiro segue a tradição portuguesa e alemã, pela qual se admitem múltiplos domicílios. Isso quer dizer que uma mesma pessoa pode ter ânimo definitivo de permanecer em várias residências ao mesmo tempo.
Por exemplo, nada impede que alguém com família em Brasília e emprego em São Paulo, tendo imóveis nas duas cidades e viajando com frequência a trabalho entre elas, seja domiciliado nos dois lugares. O Direito Civil está confortável com acionar judicialmente essa pessoa tanto em Brasília como em São Paulo para discutir um contrato.
Porém, ao adotar o ânimo definitivo também como critério de residência fiscal, a lei brasileira se torna mais permeável a situações de dupla residência fiscal, porque admite a possibilidade de existir ânimo definitivo no Brasil mesmo vivendo em lugar diverso. Há o risco, portanto, de que alguém que vive e mora no exterior possa ter ainda algum vínculo com o Brasil que preserve a residência fiscal no Brasil, dependendo de como se comporta.
(Des)ânimo de pagar imposto
Como o ânimo definitivo é subjetivo por natureza, necessariamente há uma margem maior de insegurança na interpretação. O ânimo definitivo decorre da intenção do contribuinte, enquanto a obrigação tributária é prevista diretamente pela lei. Ao utilizar um critério subjetivo, a lei tributária cria certa margem de oportunidade para que o contribuinte escolha a situação que lhe é mais conveniente. Poderia o contribuinte escolher ter residência fiscal ou não?
Nem tanto. O Brasil não é o único país que escolhe um critério de residência fiscal subjetivo. Esse não é um problema em si. O problema é a falta de limites claros sobre a aplicação do conceito. Esse seria o papel da Receita Federal, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e do Judiciário. Sendo o Brasil ainda bastante fechado, poucas foram as oportunidades de esclarecimento do tema.
O que revelam decisões aplicando o ânimo definitivo
A solução mais adequada que utilizamos para lidar com a subjetividade do ânimo definitivo é utilizar teoria das provas. Com base na análise de decisões judiciais e administrativas (vide mais abaixo), é possível reconhecer padrões de julgamento que revelam o que se deve levar em conta numa discussão contra o Fisco:
1. Discutir a existência ou a perda do ânimo definitivo depende de provas
Não basta a mera declaração da pessoa envolvida ou do Fisco. Documentos e testemunhos devem ser levados em conta como elementos de prova na avaliação do ânimo definitivo.
Isso é coerente com a subjetividade do ânimo definitivo. As intenções de alguém não são conhecidas por telepatia. É necessário analisar fatos e circunstâncias da vida de uma pessoa que exteriorizem que ela se fixou no lugar com a intenção de ali permanecer. E isso depende da comparação de elementos de prova diversos, como documentos e testemunhos.
2. Declarações de imposto de renda são elementos de prova do ânimo definitivo (ou da perda dele)
A entrega da Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP) é elemento de prova da perda do ânimo definitivo de residir no Brasil.
Igualmente, a entrega da declaração de imposto de renda “normal” (DAA) é elemento de prova da manutenção do ânimo definitivo.
Uma das descobertas mais extraordinárias da análise de decisões é que declarações de imposto de renda não só são usadas como elemento de prova a respeito de imposto de renda, mas também em discussões sobre outros tributos (ITCMD e Imposto de Importação) e em temas não tributários (como Direito Societário e Processo Civil).
O ponto mais importante talvez seja este: entregar a DSDP é um elemento de prova importante para qualquer discussão de residência fiscal do Brasil, e mesmo para temas não tributários. O ônus da prova de quem entrega declarações normais enquanto vive e mora no exterior é de que ainda existem os mais diversos vínculos com o Brasil. Além disso, a declaração de imposto de renda é uma prova que o contribuinte cria contra ou a favor de si mesmo, a depender do contexto.
3. Comprovar domicílio (ou residência fiscal) fora do Brasil não basta
O critério brasileiro admite ânimo definitivo em múltiplos lugares, e por isso é necessário provar que o ânimo definitivo no Brasil deixou de existir para ser considerado não residente.
Esse parece ser um erro comum cometido até por profissionais. Se uma pessoa comprova ter ânimo definitivo em outro País, isso não significa necessariamente que tenha perdido o ânimo definitivo de residir no Brasil. Então, no caso da não residência, não basta provar evidências da vida em outro país, mas também evidenciar o rompimento dos vínculos que existiam no Brasil antes da mudança.
O fundamento para as três conclusões acima é traduzido pelas poucas decisões que encontramos acerca do ânimo definitivo. Essas tratam de temas variados, não só sobre imposto de renda:
Decisão da 1ª Câm. D. Priv. TJSP sobre Inventário
Estar em um lugar somente com o objetivo de obter tratamento médico para câncer não é suficiente para denotar o ânimo definitivo de permanecer naquele lugar.7AgInst 0453772-61.2010.8.26.0000, TJSP, 1ª Câm. D. Priv., rel. Des. Paulo Eduardo Razuk, unânime, j. 11.01.2011.
Provas consideradas:
Comprovação de onde pessoa falecida mantinha maior parte dos bens: imóvel residencial, imóvel rural, estabelecimento empresarial e agência onde mantinha conta bancária
Decisão da 2ª Câm. D. Púb. TJSP sobre Tributário (ITCMD)
Não deve ser exigido o ITCMD de doadores que comprovaram terem perdido o ânimo definitivo de viverem no Brasil para se mudarem para Portugal.8ApelReex 1004216-32.2017.8.26.0053, TJSP, 2ª Câm. D. Públ., rel. Des. Claudio Augusto Pedrassi, unânime, j. 05.12.2017.
Provas consideradas:
Entrega da Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP) no ano anterior à doação, contrato de compra e venda de imóvel em Portugal, comprovantes de compra de veículos, de seguro saúde, titularidade de conta bancária e outros elementos demonstrando o ânimo definitivo em Portugal.
Entendeu-se que as viagens frequentes ao Brasil eram realizadas por negócios e vínculos familiares, o que em si seria insuficiente para configurar o ânimo definitivo de se manterem no Brasil. Rejeitou-se o argumento do Fisco de que seria relevante o fato de o casal ter passado 120 dias em território brasileiro no ano da doação ou que o dinheiro doado estava no Brasil.
Decisão da 1ª Câm. Res. D. Empr. TJSP sobre Direito Societário
Cursar graduação em universidade nos Estados Unidos por 4 anos, com contrato de locação de imóvel em Boston, é insuficiente para afirmar que se perdeu o ânimo definitivo de utilizar apartamento no Brasil como residência, ainda que se visite o apartamento apenas durante o período de férias.9AgInst 2219468-68.2019.8.26.0000, TJSP, 1ª Câm. Res. D. Empr., rel. Des. Cesar Ciampolini, unânime, j. 11.12.2019.
Provas consideradas:
Pessoa não formalizou a saída definitiva do Brasil, tendo apresentado declarações de imposto de renda normais enquanto esteve morando nos Estados Unidos. Também assinou alteração de contrato social de empresa no Brasil informando o apartamento brasileiro como seu local de residência e domicílio enquanto vivia nos EUA.
Decisão da 2ª Seção do STJ sobre Inventário
Mudança de casal para a casa de uma das filhas, para que o esposo se recupere de cirurgia na bacia, é mudança com ânimo definitivo se havia a perspectiva de se mudarem de forma mais permanente para o apartamento de outra filha na mesma cidade logo após a convalescença.10AgInt no CC 143.741/PR, STJ, 2ª S., rel. Min. Maria Isabel Gallotti, unânime, j. 14.09.2016.
Provas consideradas:
Certidão de óbito da esposa falecida e ficha de internação do viúvo informando o novo endereço como residência.
Decisão da 1ª Turma do STJ sobre Guarda de Menores (Sequestro Internacional de Crianças)
Breve período passado no Brasil (5 meses) como experiência para casal divorciado conviver e criar os filhos é insuficiente para criar ânimo definitivo no Brasil para as crianças. Residência habitual mantida na Noruega, onde mãe e pai ainda mantinham vínculos familiares e de trabalho no período.11REsp 1.315.342/RJ, STJ, 1ª T., Min. Napoleão Nunes Maia Filho, unânime, j. 27.11.2012.
Provas consideradas:
Testemunho da mãe e do pai, comprovação de recebimento de benefício social da Noruega pela mãe durante período em que casal estava no Brasil e decisão judicial norueguesa a respeito da guarda dos filhos.
Decisão da 2ª S., 3ª Câm., 1ª T. Ord. do Carf sobre Tributário (IRPF) – Caso Leandro de Aguiar
Entrega da DAA comprova interesse e intenção de manter o vínculo fiscal com o país (ânimo definitivo). O fato de ser residente fiscal em Portugal, ou morar e possuir rendimentos e negócios lá, é insuficiente para afastar a residência fiscal no Brasil. Contribuinte também tinha rendimentos, propriedades e negócios no Brasil.12Ac. 2301-007.136, CARF, 2ª S., 3ª Câm., 1ª T. Ord., rel. p/ voto Cons. João Maurício Vital, maioria, j. 04.03.2020.
Provas consideradas:
Entrega da Declaração de Ajuste Anual (DAA) em vez da Comunicação de Saída Definitiva (CSD) e da Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP) durante os 17 (dezessete) anos de vida em Portugal
Decisão da 11ª Turma do TRF3 sobre indenização para Militar
Militar que meramente alugou um imóvel em Boa Vista (RR), onde passava 2-3 dias por mês e onde jamais viveram sua esposa e filhos, não fixou residência com ânimo definitivo. Por isso, deve devolver indenização de transporte recebida para mudar-se com a família para a nova localidade.13ApCiv 0016907-49.2000.4.03.6105/SP, TRF3, 11ª T., rel. J. Fed. Noemi Martins, unânime, j. 26.09.2017, DOU 03.10.2017.
Provas consideradas:
Data do contrato de locação e testemunho do proprietário do imóvel na nova localidade a respeito do verdadeiro uso do imóvel.
Decisão da 3ª Turma do TRF 3 sobre Tributário (Imposto de Importação)
Não deve pagar imposto de importação o proprietário de veículo que tenha duplo domicílio, no Brasil e em país vizinho do Mercosul (Paraguai). Ao veículo comprado no Paraguai para transporte entre os dois países aplica-se o regime de admissão temporária, em que se suspende a cobrança do imposto de importação. O imposto de importação do veículo seria devido se o proprietário do veículo tivesse ânimo definitivo somente no Brasil.14Apel/ReeNec 0002639-37.2016.4.03.6005, TRF3, 3ª T., rel. Des. Fed. Cecília Marcondes, unânime, j. 23.05.2019, DJF3 27.05.2019.
Provas consideradas:
Ali se comprovou que a pessoa desenvolvia atividades empresariais nos dois países (atividade agropecuária no Paraguai e é sócio-administrador de empresas de engenharia e construção civil no Brasil), e por isso tinha ânimo definitivo nos dois países.
Decisão da 6ª Turma do TRF3 sobre Tributário (IRPF)
Entrega da DAA durante período em que pessoa viveu na Inglaterra não pode ser cancelada somente com base na evidência de que pessoa vivia no exterior, quando ao mesmo tempo mantinha atividade rural no Brasil.15AgInst 5022191-65.2019.4.03.0000, TRF3, 6ª T., rel. Des. Fed. Toru Yamamoto, unânime, j. 06.03.2021.
Provas consideradas:
Declarações de imposto de renda informando rendimentos de atividade rural no Brasil e omitindo rendimentos do exterior (investimentos financeiros e benefícios do Governo Inglês).
Comentários adicionais:
A decisão do caso foi apenas preliminar, para saber se havia justificativa suficiente para antecipação dos efeitos da tutela pretendida.
No caso, uma senhora idosa, de 92 anos, promoveu ação judicial pedindo o cancelamento das declarações de imposto de renda entregues por seu contador, na forma de declaração de ajuste anual, para conseguir trazer seus recursos da Inglaterra, nunca declarados no Brasil.
Ela afirmou que era não residente, tendo se mudado para o exterior em 1975 e ali se casado com cidadão britânico. Diz que retornou ao Brasil com ânimo definitivo apenas em dezembro de 2018, após ter ficado viúva.
O contador teria transmitido as declarações de imposto de renda para informar os resultados de atividade rural no Brasil, sem outras informações. A omissão dos bens e rendas do exterior e a falta de entrega da Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) estavam impedindo que os recursos da Inglaterra fossem trazidos para o Brasil.
O principal ponto em desfavor da senhora foi que, ao simplesmente cancelar as declarações de imposto de renda, o imposto de renda sobre a atividade rural deixaria de ter sido recolhido regularmente, pois o regime aplicável ao não residente é diferente. Vale frisar que os valores da atividade rural foram considerados relevantes, e esta foi desenvolvida diretamente pela pessoa física (a senhora), e não por intermédio de uma pessoa jurídica.
Não houve discussão profunda sobre o ânimo definitivo, mas é possível afirmar que a entrega das declarações de imposto de renda “normais” eram elemento de prova desfavorável, e que a contribuinte poderia ter tentado regularizar sua situação administrativamente, diretamente perante a RFB, antes de ingressar com ação judicial.
Em resumo: em qualquer planejamento para viver e trabalhar no exterior, é necessário reunir elementos de prova da realidade mais aderente ao caso. No caso da saída definitiva do Brasil, trata-se da entrega da Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP) e do cumprimento das demais obrigações. Para a dupla residência fiscal, vale reunir provas da manutenção dos vínculos com o Brasil.
Mas e as outras regras sobre residência fiscal no Brasil?
Vale comentar que a regulamentação da Receita Federal traz outras hipóteses a respeito da aquisição ou manutenção da residência fiscal no Brasil. Em especial, há regras sobre a aquisição de residência fiscal pelo estrangeiro e da situação da pessoa que se ausenta do Brasil durante 12 meses consecutivos. Esse tema merece ser detalhado num texto próprio.
Por ora, basta entender que o legislador pode, por meio da lei, afastar o ânimo definitivo em situações específicas, preferindo outro critério. Também pode utilizar regras próprias para facilitar a prova do ânimo definitivo, presumindo que este exista, ou que tenha deixado de existir (as presunções legais). São regras que alteram o ônus da prova do status de uma pessoa como residente fiscal ou como não residente. O que a lei não pode fazer é inventar, por ficção, que uma pessoa física seja residente fiscal no Brasil sem lastro na realidade.
Neste blog você encontrará sempre informações relevantes e atualizadas a respeito do tema, e orientações para evitar problemas com o Fisco e demais autoridades. Fique à vontade para nos relatar sua experiência, compartilhar o conteúdo com outros amigos que necessitem de orientações e entrar em contato conosco através do e-mail contato@tersi.adv.br ou então via WhatsApp. Clique aqui para enviar uma mensagem agora.
Conte comigo!
Referências:
- 1Instrução Normativa SRF 208/2002, arts. 2º e 3º.
- 2A expressão “caráter permanente” é utilizada pela Lei 3.470/1958, art. 17, caput. Em nenhum momento a lei tributária faz referência direta à expressão “ânimo definitivo”, somente a regulamentação da RFB.
- 3Código Civil, art. 70.
- 4PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, v. I, 23ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 319-320; RODRIGUES, Silvio, Direito civil, São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 105.
- 5SCHOUERI, L. E. Residência fiscal da pessoa física. Direito Tributário Atual, v. 28, 2012, p. 149-172 (152-153).
- 6O “domicílio tributário”, previsto pelo art. 127 do CTN, é um critério utilizado para a fiscalização e administração de diversos tributos, e também, eventualmente, para definir quem é o ente competente num conflito interno, quando o domicílio tributário for expressamente adotado para delimitar a competência tributária da União, Estados, Municípios e do Distrito Federal. Em outras palavras, é conceito parecido com o conceito de “residência fiscal”, mas não se trata da mesma coisa. Vide XAVIER, Alberto, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 218. Não é à toa que é tão difícil distinguir a “residência fiscal” de outros conceitos.
- 7AgInst 0453772-61.2010.8.26.0000, TJSP, 1ª Câm. D. Priv., rel. Des. Paulo Eduardo Razuk, unânime, j. 11.01.2011.
- 8ApelReex 1004216-32.2017.8.26.0053, TJSP, 2ª Câm. D. Públ., rel. Des. Claudio Augusto Pedrassi, unânime, j. 05.12.2017.
- 9AgInst 2219468-68.2019.8.26.0000, TJSP, 1ª Câm. Res. D. Empr., rel. Des. Cesar Ciampolini, unânime, j. 11.12.2019.
- 10AgInt no CC 143.741/PR, STJ, 2ª S., rel. Min. Maria Isabel Gallotti, unânime, j. 14.09.2016.
- 11REsp 1.315.342/RJ, STJ, 1ª T., Min. Napoleão Nunes Maia Filho, unânime, j. 27.11.2012.
- 12Ac. 2301-007.136, CARF, 2ª S., 3ª Câm., 1ª T. Ord., rel. p/ voto Cons. João Maurício Vital, maioria, j. 04.03.2020.
- 13ApCiv 0016907-49.2000.4.03.6105/SP, TRF3, 11ª T., rel. J. Fed. Noemi Martins, unânime, j. 26.09.2017, DOU 03.10.2017.
- 14Apel/ReeNec 0002639-37.2016.4.03.6005, TRF3, 3ª T., rel. Des. Fed. Cecília Marcondes, unânime, j. 23.05.2019, DJF3 27.05.2019.
- 15AgInst 5022191-65.2019.4.03.0000, TRF3, 6ª T., rel. Des. Fed. Toru Yamamoto, unânime, j. 06.03.2021.
Home ' Fóruns ' Residência fiscal no Brasil: o nebuloso “ânimo definitivo”